Jumara Carla Azevedo Ramos Carvalho

ARQUIVO PÚBLICO MUNICIPAL DE CAETITÉ – BAHIA: PATRIMÔNIO PÚBLICO, TERRITÓRIO DO SABER, ESPAÇO DE MEMÓRIA E UM LOCAL PARA A REALIZAÇÃO DE PRÁTICAS PEDAGÓGICAS INTERDISCIPLINARES

  

O presente trabalho discute a importância e inserção dos arquivos públicos, como território do saber e espaço de memória para a prática de um trabalho interdisciplinar, tendo como ponto de partida a junção dos conteúdos explorados nos livros didáticos com os documentos que contam a história local de Caetité-BA. No intuito de agregar maior consistência e relevância ao conteúdo mediado pelo docente, esses documentos dialogam com a história nacional e apresentam amplos aspectos da vida social, econômica, política, religiosa e cultural do lugar em que vive, dando uma maior visibilidade desse patrimônio.

 

Propor uma abordagem interdisciplinar na sala de aula/escola/arquivo público é uma maneira de ampliar o conhecimento acerca dos conteúdos programados, trabalhando com situações do cotidiano para que os assuntos estudados ganhem novos significados e que o saber torne-se mais participativo, democrático, potencializador e politizador não só para os educandos, mas para todos os sujeitos envolvidos nessa prática, pois segundo  Érica Garrutti el. All “a escola possui a função de integrar o educando à sociedade” (2004, p. 5) planejando e integrando ações voltadas para um ensino mais dinâmico, mais contextualizado. Para tanto, Selma Pimenta também chama a atenção para o papel do docente, como um dos “atores principais” (2009, p. 55) nesse processo de transformação do cotidiano escolar, pois serão eles os agentes condutores dessa prática.

 

Para a realização do trabalho interdisciplinar buscou-se o Arquivo Público Municipal de Caetité – APMC, criado em 1996 e tornando-se uma referência para a região em virtude da rica documentação ali preservada, conforme discute PIRES (2011). Observando a grande quantidade e diversidade documental ali selecionada, preservada e arquivada esse território do saber agrega à memória histórica desta região, os quais se constituem enquanto fontes inestimáveis que podem ser aproveitadas pelos professores de diversas áreas. Dessa forma, é possível proporcionar aos alunos um contato com a documentação histórica local, capaz de ser explorada por diversos vieses.

 

Nesta perspectiva, observa-se que ensinar História é um desafio constante do professor que vê no componente curricular a possibilidade de circular entre os diferentes campos do saber através de práticas interdisciplinares. Como forma de exercer essa prática é possível trabalhar com a documentação histórica, mantidos em arquivos públicos ou privados destinados a preservar a memória do país, do Estado, do município e dos sujeitos, individualmente.

 

Para a realização desta proposta pensou-se na análise de documentos produzidos nos anos de 1889 a 1930, que correspondem em linhas gerais, os anos da Primeira República Brasileira e objeto do conhecimento trabalhado no livro didático, na primeira unidade, do 9º Ano de Ensino Fundamental.

 

Explicar o conteúdo fazendo uma junção dos acontecimentos históricos nacionais com o local é abrir o leque para a análise e discussão de uma história contextualizada utilizando-se de documentos que dialogam com aspectos da vida social, cultural e econômica do alto sertão da Bahia, especialmente da cidade de Caetité. Para tal análise foram selecionadas correspondências pertencentes ao acervo da Família Teixeira, família do grande educador Anísio Teixeira, ricos e com representatividade na política local e estadual foram também detentores de posses e poder.

 

Outros documentos utilizados foram as matérias publicadas no Jornal A Penna, as quais realçam aspectos da história regional e local em âmbitos variados associando ou contrapondo as informações contidas no livro didático sobre a primeira fase da República, no Brasil. Mostrar este alto sertão da Bahia antenado as questões políticas nacionais e estaduais, com circulação de jornais, recebimento de documentos oficiais, telegramas, fotografias, cartão -postal e cartas é desmistificar rótulos de um sertão isolado, atrasado e sem participação política.

 

Para a realização desta atividade montou-se um projeto com o título “A história local em cena” dividido em cinco etapas, com duas horas aulas cada. A primeira etapa aconteceu na sala de aula com a explanação de conteúdo sobre a Proclamação da República para isso foi levado como recurso metodológico uma matéria publicada no Jornal A Penna sobre o assunto, a partir dessa reportagem foram mediadas situações de aprendizagem que aguçasse o interesse sobre a história local.

 

O segundo etapa foi o agendamento de uma aula de campo no arquivo público da cidade para que os alunos pudessem conhecer a instituição e sua importância na região. A aula de campo agendada no contra turno contou com a colaboração da coordenadora e funcionários do arquivo que explanaram a importância deste patrimônio local que guarda a memória da história da nossa cidade, com documentos preservados do século XIX, XX e XXI. Falar sobre o uso desses documentos em sala de aula é também refletir sobre a preservação e o acesso a esses documentos. Institucionais, pessoais, públicos ou privados, esses documentos com o passar do tempo, ganham conotação histórica e se tornam patrimônio público, guardam significados múltiplos e podem ser utilizados para diversos fins. Entretanto, para que esses documentos estejam acessíveis à pesquisa é preciso que se estabeleçam meios de preservá-los.

 

Sendo que, a partir do ano de 1991 os arquivos vão manter a missão de preservar e conservar o patrimônio documental para que todos possam ter acesso à memória amparados na Lei nº 8159/91, que dispõe sobre a politica nacional dos arquivos públicos e privados no Brasil.

 

Na esfera municipal verifica-se uma grande dificuldade em relação à preservação da documentação histórica pelo fato de muitos municípios brasileiros não possuírem arquivos institucionais, criados na forma da lei. Em geral, existem salas dentro das repartições reservadas a serem depósitos de “papéis velhos”, onde a documentação é empilhada, sem a menor condição de acesso. Todavia, a criação e manutenção dos arquivos são tarefas que exigem comprometimento, responsabilidade e conhecimento, tanto por parte dos gestores quanto dos funcionários, nas diferentes funções que exercem. Em Caetité, no alto sertão da Bahia, registra-se uma iniciativa de grande relevância em prol da preservação, digitalização e divulgação da documentação histórica local. Para concluir esta etapa a coordenadora mostrou como os documentos são selecionados, higienizados e arquivados e, também, digitalizados.

 

A terceira etapa também foi realizada no arquivo público e contou novamente com o apoio da coordenação e funcionários da instituição que a pedido da docente selecionou alguns documentos do período da Primeira República para que a aula pudesse acontecer, para isso ela teve acesso a documentação de forma antecipada para poder realizar o seu planejamento. A aula aconteceu no arquivo público onde todos os participantes tiveram que usar luvas e máscaras, conduta adotada para o manuseio da documentação. Vale ressaltar que toda esta atividade foi realizada em 2019.

 

Utilizar do Arquivo Público Municipal de Caetité para a realização de aulas com estratégias diferenciadas é ao mesmo tempo sair de sua zona de conforto, do seu domínio disciplinar para passar a dialogar com diferentes áreas do saber e tanto o professor como o aluno poderam dispor de assuntos sobre saúde, economia, política, cultura, sociedade, educação, lazer e religião, entre outros publicados nos jornais, nas correspondências e demais documentos.

 

Diante dessas circunstâncias, cabe ao professor oferecer aos alunos outras fontes de saber que fazem parte da sua história, do lugar onde vivem, fazendo-os transitar entre contextos mais amplos e específicos, conforme está previsto nos Parâmetros Curriculares, pois: “[...] Sob a denominação de Temas Locais, os PCN’s pretendem contemplar os temas específicos de uma determinada realidade [...]” (2001, p. 35).

 

Dar aos conteúdos uma perspectiva regional e/ou local é uma maneira de articular os diferentes contextos históricos de uma determinada época, ressaltando suas diferenças e particularidades. Ao mesmo tempo, é importante para demonstrar o quanto as regiões se interligam por meio do comércio, da política, da religião e de outros aspectos que ao longo da história impulsionaram o fluxo intenso de pessoas de distintos lugares. Além disso, ajuda a romper de forma crítica noções acerca de “grandes centros econômicos”, “desenvolvimento”, “atraso”, “sertão/interior”, “riqueza”, “modernidade”, “tempo”, entre outras.

 

Sem o conhecimento de sua própria história dificilmente os alunos desenvolveram o senso crítico acerca da sua realidade e condição social, sentimento de pertencimento e valorização de suas raízes culturais, nem mesmo compreenderão que a história da sua região também é fruto de um processo que envolveu conflitos e disputas de poder, assim como aquelas que aparecem nos livros didáticos.

 

A quarta etapa do projeto contou com a participação do professor universitário, pesquisador, Marcos Profeta Ribeiro, autor do livro “Mulheres e poder no alto sertão da Bahia”. O professor contou a história da família Teixeira e do poder exercido pelas mulheres da família narrando a história de Celsina Teixeira Ladeia a partir da análise das cartas enviadas e recebidas por e para ela. Essas cartas encontram-se arquivadas e disponíveis para pesquisa no arquivo público, sendo que a escrita e o recebimento de diversas cartas fizeram parte do cotidiano da Família Teixeira. Um dos maiores contingentes foi enviado ao médico, negociante e político Deocleciano Pires Teixeira, mas também, encontra-se no arquivo uma grande quantidade de correspondências femininas trocadas entre mulheres e homens com assuntos diversos. Percebe-se nas escritas femininas, cujo destinatário, era do sexo masculino, assuntos que abordavam desde a política, educação, religião e economia contradizendo antigos estereótipos de que as mulheres não participavam ou não opinavam sobre a política.

 

Trazer para o centro do debate a participação feminina na política local é mostrar ao mesmo tempo a sua visibilidade e atuação em uma época em que seus direitos eram negados. As correspondências femininas rompem com uma ideia corrente de que as mulheres de outros tempos, por não poderem votar, eram alheias ao processo político partidário que envolvia o “universo masculino”.

 

A quinta e última etapa foi a análise documental como possibilidades de leituras interdisciplinares dos documentos históricos, patrimônio preservado pela instituição. Para esta atividade os alunos foram separados em dupla, e orientados pela docente, coordenadora e funcionários do arquivo público que disponibilizaram para a pesquisa vários tipos de documentos para que eles pudessem perceber o jogo político das lideranças locais que disputavam entre si poder e prestígio através de alianças políticas realizadas por meio de apadrinhamento e compadrio, prática corriqueira na primeira fase da República.

 

Foram disponibilizados também para a pesquisa cartas, jornais e fotografias para que os alunos pudessem analisá-las estabelecendo contrapontos entre o passado e o presente aproveitando vários flashs dessas documentações para discutir mecanismos de desenvolvimento social, investimentos, aperfeiçoamento da produção, êxodo rural, patrimônio imaterial e material, narrativas, memórias, etc.

 

Todas as temáticas elencadas acima propiciam a interdisciplinaridade em sala de aula ou em outros locais criando um espaço de estudo, debate e interação em que o professor como mediador, oportunizará uma experiência e conhecimentos significativos no processo ensino-aprendizagem.

 

A metodologia adotada para o trabalho foi a pesquisa documental, considerando, como já se disse, o período da Primeira República Brasileira (1889 a 1930) e a possibilidade de se trabalhar documentos produzidos neste período histórico específico. Trata-se de documentos preservados pelo Arquivo Público Municipal de Caetité, no alto sertão da Bahia, local de guarda patrimonial.

 

Essas novas concepções de ensino vêm focando a capacidade dos alunos perceberem o mundo que o circunda por meio da sensibilidade e do seu olhar crítico, o que incide sobre a valorização da capacidade de refletir sobre a sociedade na qual estão inseridos.

 

Considerando o ensino de História, observa-se que em meio às novas demandas socioeducacionais, o professor desta área também se vê convidado a repensar suas metodologias, exercendo uma prática pedagógica interdisciplinar, menos cômoda, menos tradicional ou que reflita um conhecimento estático. Teorias, conceitos, ensino/aprendizagem, tudo isso pode ser revisto a partir de novos pressupostos, os quais exigem um perfil diferenciado do historiador e um novo ensino para uma disciplina que durante tanto tempo pareceu não dialogar com as demandas mais atuais dos alunos, dos professores e da educação e da educação como um todo.

 

Referências biográficas

 

Ms. Jumara Carla Azevedo Ramos Carvalho, professora do Complexo Integrado de Educação de Caetité e da Escola Municipal Dom Manoel Raimundo de Melo.

 

 

Referências bibliográficas

 

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Apresentação dos temas  transversais: ética/ Ministério da Educação Fundamental. 3. Ed. Brasília: MEC/SEF. 2001.

 

GARRUTTI, Érica Aparecida; SANTOS, Simone Regina dos. A interdisciplinaridade como forma de superar a fragmentação do conhecimento. Revista de Iniciação Científica da FFC, v. 4, n 2, 2004.

 

PIMENTA, Selma Garrido (org). Saberes pedagógicos e atividades docentes. 7ª Ed. São Paulo: Cortez, 2009.

 

PIRES, Maria de Fátima Novaes. Arquivo Público Municipal de Caetité: Notas Históricas Atuais. Caderno de Resumo e Anais do I Seminário do Grupo de Pesquisa, Cultura, Sociedade e Linguagem (GPCSL/CNPq): os sertões da Bahia. Caetité, v.1. nº1, p. 67-77, out. 2011.

 

RIBEIRO, Marcos Profeta. Mulheres e Poder no Alto Sertão da Bahia: a escrita epistolar de Celsina Teixeira Ladeia (1901 a 1927). São Paulo: Alameda, 2012.

 

4 comentários:

  1. Prezada Jumara,

    Muito bonito o projeto que você descreveu no artigo acima, parabéns! Também estudei no interior do Estado da Bahia nos anos 2000 e as metodologias eram muito diferentes, com certeza, se eu tivesse aprendido por meio de projetos e métodos assim, meu caminho rumo ao conhecimento, que sigo a trilhar, teria sido muito mais curto e menos dificultoso. Sem contar que a história da região de Caetité, assim como, de outras regiões do sertão é muito rica, só precisam deste olhar que as valorizem e divulguem. Novamente, parabéns por estar desenvolvendo um trabalho tão emancipador.

    Abraços, Cláudia Sena.

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  2. Muito obrigada Cláudia!!!
    Temos que mostrar desde cedo para nossos alunos a valorização do nosso território e o pertencimento enquanto sujeito.

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  3. Jumara, parabéns pelo teu trabalho. Dialogar sobre a história de Caitité e suas trilhas históricas faz ampliar nosso olhar para esse espaço pouco reconhecido. abraços

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  4. Jaqueline Zarbato a sala de aula é o lugar propício para a realização das trilhas da história local. É neste espaço que ensinamos e aprendemos ao mesmo tempo.

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